17 de mai. de 2009

A credibilidade do Brasil está em jogo

Na linha do meu post de 08 de maio, a Folha de S. Paulo do dia 14 último publicou o artigo abaixo, de autoria de Saulo Ramos, que põe às claras essa maracutaia (mais uma!) que o Governo e o Congresso vêm articulando, com relação aos Precatórios:

Vergonha permanente [artigo de Saulo Ramos, Folha de S. Paulo de 14/05/09]

Pela terceira vez utiliza-se emenda constitucional para prorrogar pagamentos de precatórios, isto é, títulos que representam dívidas públicas resultantes de condenação judicial. O precatório, por si só, já é um calote. Somente surge quando o poder público, União, Estados e Municípios, deixa de pagar dívidas e obriga os credores a recorrerem ao Judiciário que, como todos sabem, é o mais lento paraíso dos devedores em geral.

Essa escandalosa mentalidade brasileira de não pagar o que deve e esperar a condenação judicial foi consagrada pela Constituição, que assegurou a liquidação dos precatórios em ordem cronológica. A regra está no artigo 100.

Com a Constituição de 1988, o Congresso Constituinte editou uma regra transitória que esticou um pouco mais o dever de pagar as dívidas objeto de condenação judicial. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, enfiou o art. 33, que concedeu oito anos de prazo (oito prestações anuais) para o pagamento dos precatórios que estivessem pendentes na data da promulgação da Constituição.

Concedeu-se mais: as entidades devedoras poderiam emitir títulos da dívida pública para pagar aqueles precatórios adiados. Foi uma farra. Alguns Estados e Municípios emitiram letras muito acima dos valores dos precatórios e saíram por aí vendendo-as por dinheiro vivo aplicado por alguns investidores incautos, que acreditavam em títulos públicos.

A imoralidade resultou na CPI dos Precatórios, com escandalosos noticiários de TV, rádios e jornais.

Alguns espertos governantes das entidades devedoras tiveram a idéia, diante do escândalo, de não pagar até os títulos públicos emitidos para pagamento dos precatórios. Alguns tribunais de justiça estaduais (a letra minúscula é de propósito) anularam os títulos e obrigaram os credores a propor ações ordinárias para cobrarem outra vez os respectivos créditos. Mais vinte anos. Resumindo a ópera: alguns dos créditos de precatórios vencidos em 1988, adiados por oito anos e transformados em letras dos tesouros devedores, não foram pagos até hoje.

Doze anos depois, o Congresso editou nova emenda constitucional enfiando, nas Disposições Transitórias, o art. 78, que deu aos precatórios, então existentes na fila, mais dez anos para serem pagos em dez prestações suaves e anuais. Teve o cuidado de ressalvar, desde escandaloso benefício, os precatórios do art. 33 e suas complementações. Mas desferiu o segundo permissivo de calote através de reforma constitucional. Outra disposição constitucional transitória (art. 86) excluiu os precatórios de pequeno valor. O direito constitucional passou a ser usado como instrumento de comércio.

Agora já se prepara o terceiro calote. Por emenda apresentada pelo Senador Renan Calheiros e aprovada pelo Senado no simbólico dia 1o de abril, sob a velocidade da luz apagada, está-se introduzindo mais um artigo nas Disposições Transitórias que dará aos devedores de precatórios mais quinze anos de prazo. Façam as contas. Oito anos no primeiro calote, dez anos no segundo e quinze no terceiro. A Constituição tem apenas 20 anos, mas os calotes nela introduzidos já somam 33 anos. E com a teratológica situação de quem, há vinte anos, recebeu títulos públicos para pagar os precatórios então existentes, teve que entrar em juízo para cobrar esses títulos e receberá novos precatórios com prazo de quinze anos. Ou aceita completar esses 35 anos ou terá que se submeter a situações mais vexatórias, pois desta vez alteram-se as disposições permanentes do art. 100.

Estabelece-se, agora, um mercado para os títulos, que os credores venderão com deságio. Haverá o economista que o chamará de “unpaid debt trade”. A maluquice maior institui leilão para os credores. Em vez de fila cronológica, pagar-se-á aquele que no leilão oferecer maior desconto. O leilão também será limitado porque dependerá de percentual da receita do devedor. Credor de precatório que não concordar com o leilão vai para o fim da fila.

A emenda está na Câmara dos Deputados, que terá a oportunidade de salvar a testada do Congresso Nacional. O escândalo de criar um mercado do calote através de disposição constitucional é desmoralizar por completo (vale o cacófato) o poder constituinte residual do Parlamento Nacional. Transforma-o em poder desconstituinte dos mais elementares fundamentos da moralidade, em que pese a pressão dos prefeitos e governadores para o Congresso cometer mais este pecado mortal: usar o direito constitucional como instrumento de assalto. Por meio de disposições transitórias institucionalizar uma vergonha permanente.

Saulo Ramos, advogado, foi Consultor Geral da República e Ministro da Justiça. É autor do livro Código da Vida.

Publicado na Folha, em 14 de maio de 2009